sábado, 22 de dezembro de 2012

"Cara Clara,




    Eu não estou indo embora simplesmente porque chegou a minha hora, ou qualquer motivo parecido. Eu vou embora, porque mesmo que em algum dia tenhamos precisado da companhia um do outro, chegou o momento em que aprenderemos mais com a despedida do que a convivência nos ensinou durante este ano que mal pareceu uma estação. Na verdade, esta foi a única cidade onde o vento me deixou por tanto tempo.

   Como recompensa pelo incômodo que talvez seja a incerteza de nosso reencontro, vou lhe dar o que todos os seus conhecidos esqueceram de desejar depois de um tempo: A minha história. Eu não espero que se satisfaça com essa história tão incompleta. Mas é a que tenho, também.

     Muito tempo depois de descobrir como funciona o mundo, foi que encontrei o significado deste carretel que desenrolei todos os dias, desde que você me conhece. Nem mesmo sei se fui a pessoa certa a herdá-lo. Quando completei dezenove anos, recebi uma caixa de madeira das mãos de meu pai. Sei que ele estava triste, mas não me lembro da expressão do seu rosto... Não posso deixar de sorrir melancólico, pensando que nada lembro daquele homem, além de sua vós pronunciando as palavras '...do seu avô...'. Quando vi que no interior da tampa estavam pirografadas as palavras 'Um ano. Começa hoje', jurei que aquele velho que desapareceu muito antes do meu pai conhecer minha mãe perdera completamente o senso. O conteúdo da caixa não me deu impressão melhor: um pequeno carretel de madeira carcomida, enrolado com uma linha branca, tão pura e fina, que mal parecia uma linha. Suas camadas estavam tão bem enroladas que eu demorei para diferenciar aquela linha de um rolo de fita. E mais tempo para relacionar a frase, a caixa e o conteúdo.

    Tende entender, Clara, que eu nunca tive um relacionamento muito chegado com meu pai. Mas saber que nenhum bem foi deixado pelo dele, além daquela caixa, e ainda mais saber que estava endereçada ao neto, e não ao filho, causou uma certa inveja que nos afastou mais ainda. E no meu aniversário de vinte anos, sem me lembrar das palavras proféticas naquela caixa, eu saí de casa. Não escolhi bens, roupas ou mesmo comida para levar. Saí de casa naquela manhã como todas as outras, com intenção de ir estudar, trabalhar, ou o que quer que eu tivesse de fazer... Mas naquele dia, tinha em minhas mãos um pequeno carretel, com uma linha que, mesmo depois de um ano, não estava nem um pouco suja. Parecia até mais branca do que no dia em que chegou nas minhas mãos. Eu o desenrolei um pouco do fio, e comecei a brincar com ela entrelaçando os dedos da mão direita tantas vezes que me espantei em perceber que o rolo ainda parecia cheio, enquanto minha mão desaparecia num emaranhado de fio. Soltei da mão aquele nó e o lancei ao chão, começando a enrolar o fio novamente. Mas ao envés de cair até o chão, aquele fio foi levado pelo vento.

    Olhei para trás, e ao redor, talvez a procura de alguém que estivesse me observando, mas curiosamente eu estava só. Aquele lugar estava completamente deserto, a não ser, é claro, por um rapaz brincando com um rolo de linha. Um rapaz que nunca retornaria àquele lugar.

    Olhei mais uma vez para o fio esticado à minha frente, cada vez mais alto, sumindo no infinito, e senti um imenso desejo de saber para onde iria aquele fino fio de branquidão. E foi a primeira parte da minha jornada. Comecei a enrolar aquele fio, com a certeza de que nunca terminaria, enquanto não descobrisse o quão longe ele chegara. E andando e enrolando aquele fio, cheguei a outra cidade. Depois a outro estado. E finalmente a outro país. aprendi a andar, a dirigir, a pedalar, a navegar e a pilotar. E o que mais demorei a aprender, foi que na véspera da minha partida, se desenrolasse aquele fio, apenas alguns centímetros, veria um cancho perfeito. Como se o fio estivesse se contorcendo por estar muito tempo enrolado. E no dia seguinte, ele se esticaria todo, mostrando-me um novo destino, com novas vidas, novos conhecimentos, novas experiências... Novos sonhos, que nunca realizarei completamente.

   Desde então, tive inúmeras paixões, passei por infinitos lugares, e por fim perdi a noção do tempo. Não importaria mesmo a minha idade, enquanto eu não viveria o tempo como as demais pessoas. Como se eu não pudesse envelhecer enquanto viajava. Até o dia em que aquela linha me levou a um deserto. E a sede, a fome e a curiosidade, me levaram a atravessar o deserto até uma cidade, onde uma grande amiga se chamaria Clara. Onde faria os votos mais insensatos que um homem não deveria fazer: Jurei conter o coração. Acho que não preciso contar o que vem depois... Parte você conheceu... Parte eu não entendo ainda... Mas sei que ontem o gancho apareceu... E tive a certeza de que se passasse a noite escrevendo, no meu velho caderno, não poderia escrever algo para guardar... Teria de arrancar essas páginas amareladas, e escritas com as mãos cansadas de um viajante... Guardá-las num envelope e passá-las pela janela do quarto de alguém que não estaria dormindo... Sei com cada fio de cabelo nos meus braços, que você abrirá a janela, antes de ler essas linhas, mas não me verá. Ficará parada olhando para aquele pequeno fecho de luz, no meio da noite. A essa linha que sumirá aos poucos, enquanto sigo tentando descobrir onde foi parar novamente. E partirei. Sem despedidas, assim como ninguém recebeu anúncio da minha chegada.

   Não espere que um pequeno fio vá aparecer no caminho do velho, novamente... Não pense que um forasteiro vai chegar novamente, enrolando um velho carretel de madeira, com uma linha tão branca como jamais poderá haver igual. E não pense que um dia verá o mesmo estranho que um dia saiu dessa cidade. Você não pode ter mudado tanto quanto eu. E nada me fez mudar ainda, como estarei mudado quando encontrar novamente a extremidade do meu guia.

   Cresça, Clara. É o único caminho para você! É a única coisa que esperamos um do outro. E será mais um capítulo no meu diário de viagem. E mais um sonho deixado para trás."

Trecho do capítulo final de "O Empinador de Vento" - (AYRES , Jônathas Oliveira)